Do que me afasta aproximando-me do que gosto
Por Alexandre Honrado
É com alguma surpresa que confesso – a mim próprio, diante do espelho dos dias – uma evidência: recorro a um punhado de icnografias variadas das quais não me separo, sabendo que no entanto seria capaz de rumar a outros lugares sem as levar comigo. Mesmo assim, há um cartaz do grupo surrealista de Lisboa que não me larga, onde se fala de medo com letras enormes e se categoriza uma coisa que hoje vai sendo necessária: “é absolutamente indispensável votar contra o Fascismo”, até porque, mesmo com embelezamentos hipócritas, é a tradução ideológica do que de pior pode haver entre nós.
Os surrealistas, por mais que sejam introdutores do acaso e do elemento acidental em quase todas as suas produções, trazem-me a pacificação, afetiva, sensual e estética, quem sabe se por serem capazes, através de veículos únicos, de celebrarem, provocando-o, do desconexo e inesperado infinito do funcionamento do inconsciente.
Desde há muito que me faço acompanhar de um quadro surrealista. Tive-o com dificuldade e depois adotei-o como se faz a um ser vivo que queremos estimar para sempre. O seu autor acaba de morrer. O Mestre Artur do Cruzeiro Seixas, que foi ao patamar dos 100 anos e decidiu que não o tocaria, interrompendo a ascensão. Libertou-se entretanto, estética e ideologicamente: teve a coragem de fazê-lo por mais de 50 anos. E há quem não consiga passar junto da coerência mais de uma semana! Traduzia-se Cruzeiro Seixas como se quer: a preto e branco. Porque o universo da cor é de outras primitivas e esforçadas causas. Diziam dele ser explorador de um universo estranho e cruel. Mas não é todo o universo estranho? E não o tornamos nós cruel, ao explorá-lo?
Um amigo que respeito (respeito todos os meus amigos por mais bizarros que me pareçam) falou-me em termos ofensivos de Michel Foucault. Não acredito que alguma vez o tenha lido e não serei eu a emprestar-lhe essa oportunidade. Mas graças à sua referência violenta, ofensiva, muito básica, lembrei-me que Foucault participou em vários debates, na Califórnia, em 1978, e proferiu uma conferência na Universidade da Califórnia, em Berkeley, uma das mais prestigiadas do mundo (e a mesma onde o pai da vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, o reconhecido economista jamaicano Donald Harris, se pós-graduou), que intitulou A Cultura de Si. Nessa apresentação de ideias, Foucault fala do tema numa perspetiva filosófica e histórica, partindo da pergunta formulada por Kant em 1784: o que é o iluminismo? Por inevitável, Michel Foucault reflete sobre outra frase intensa: conhece-te a ti mesmo. E procura responder à questão: como é que as obrigações, connosco próprios e com os outros, fizeram de nós o que somos?
É o que converge, para mim, no ”meu” Cruzeiro Seixas, no meu punhado de iconografias, na necessidade de votar sempre contra o Fascismo, no respeito ainda pela opinião de outros com os quais não concordo, mas que merecem que a sua voz não tenha censuras que a impeça de chegar ao mais saudável contraditório; na necessidade insana de ler autor após autor, não os descriminando por ideias ou práticas, quando se revelam seres maiores.
Freud influenciou o surrealismo com a interpretação dos sonhos ou a relação entre o prazer e a morte. A mim cabe-me a dose de prazer que, nas minhas iconografias, me separe da morte como se fossem germinações de novos sóis, mesmo a preto e branco.
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